Queira eu fazer-me presente para receber o tanto que me dás. Vou-me repetindo esta frase para ir recebendo a vida nas pequenas vírgulas, nas pausas e observar onde me desobedeço e abandono, onde estremeço, onde duvido e me deixo cair nas narrativas que me ensurdecem com tanto ruído.
E qual a melhor forma de receber o amor que acho que me faltou? É distribuir amor, é encher os espaços à minha volta de amor. É cuidar no outro o que gostaria que em mim tivessem cuidado. Não para fugir de mim, não para tapar as dores, mas porque o outro é o prolongamento de mim. E também isso vou fazendo presente, lembrando-te que também preciso de cuidado. Não o outro em vez de mim, mas eu como prioridade e se outro cruza o meu caminho, incluo e distribuo.
E digo, porque também preciso relembrar-me, reforçar. É que às vezes na minha pequenez ainda exijo atenção, que me vejam e escutem, e a criança executa como chamada de atenção, agrada para ser a boa menina, adapta-se para não incomodar. E quando se dá conta, afirma os não, mete-se de fora, fica na vida dela. E ali, depois de dizer o não, o corpo começa a fazer, a sentir que era para intervir. E vive a contradição dentro até se deixar ir e confiar. É sempre chamada para ocupar o lugar correto, para aprender mais um pouco sobre si. Limpar o espaço do outro "obriga-a" a limpar também o seu espaço, logo a cumprir-se melhor dentro dele. A vir para dentro, a carregar baterias, a obedecer-se melhor.
A afirmar-se dentro de si. E vinha a pergunta "onde te continuas a abandonar?" É que a tendência é repetir a matriz do que a perceção recebeu em criança. Não houve espaço, atenção, disponibilidade emocional para ser recebida, a sensação de abandono, de orfandade, E o que fazer com a ferida aberta, como dar-lhe colo, como atuar com a sua medicina de colo, amor e presença?
Como deixar de ser filha pedinte, faminta de boca aberta para o mundo como se todos lhe devessem? Como deixar de ficar ressentida pela falta de colo, pela ausência que sente receber dos outros? Porque de alguma forma continua a encolher-se, a minimizar-se, a vitimizar-se.
E apanhar-se é ir curando, cuidando, recolhendo, incluindo-se com ternura, validando. Nada para excluir, nem auto-excluir. É que entregar essa filha ao mundo, aos outros para cuidarem é abandonar-se, é ficar à mercê. E já não precisava disso.
Podia ser filha de si própria, mãe e pai e entregar-se aos cuidados da mãe e pai divinos. Ser generosa consigo, acompanhar-se. Ser a sua própria autoridade e direção. Estava a aprender, a observar, a dar passos em direção a si. Um caminhar, um novo respeito, um novo amor.
E se pode ter tido muitos abandonos na vida, na verdade teve muito amor, colo e acompanhamento que a permitiram fazer um caminho rumo a si. De escolhas sanas, de cura, de bem querer, de dizer muitos nãos, de desistir do que lhe fazia mal, de atravessar as dores, de largar vícios, apegos. De autonomia, de se elogiar, de construir projetos, iniciativas, de atravessar tantas batalhas em que se manteve fiel a valores, honestidade, amor, compaixão e generosidade por si e pelos demais. Podia ter desistido, ter-se anestesiado... mas escolheu sempre encarar os medos, cultivar a coragem e a pureza de coração.
Recebeu amor. Sempre se recebe amor, por mais disfuncional e desorganizado seja o sistema familiar onde se nasceu. Cada um à sua maneira mostra o amor. A avó presente que cuida, protege, ensina as mezinhas, conta histórias, a mãe que sustenta e provê, o avô que aligeira, o tio que brinca, o padrasto que ensina, o irmão que protege a mana mais nova. É preciso reconhecer e amar o que se recebeu tal como foi com todas as células e sentir que foi suficiente. Sem culpas, sem cargas, sem com licenças, sem dívidas para que possa seguir construindo o meu destino.
Sou autosuficiente. Vejo-me, confio-me, escuto-me e atendo-me. Vou repetindo-me, para que me desperte.
Caminho só e isso é bom, porque me levo dentro, obediente à minha luz própria. E veio esta imagem, enquanto limpava o espaço e o ruído. Afinal a tv às vezes passa umas imagens interessantes. E a música era xamânica, coincidências. Relembrando a chama que sou, a curandeira que cuida da sua própria chama, a medicina, a que viaja entre mundos e se recorda. E ainda que só há tantos braços e abraços e irmãos de caminho, guardiões e anjos ao redor seguindo juntos, apoiando, cantando, rezando, oferecendo calor, medicina e colo.
E como as legendas continuam enquanto escrevo passou a música "somos luz", reforçando a certeza desta luz que transportamos dentro e a seguir "vuela con el viento ". Agradeço a minha vida pachamama, eu te amo. Assim de simples, sempre que me permito sou instrumento que recebe as mensagens deste espírito que a habita.
Então abandono as velhas roupas e crenças que me afastam deste feixe de Luz que sou. E na aceitação radical de toda a biografia, de todos os passos, de todas as dores e ardores, digo sim a mim. Sou chama viva que se mantém acesa. Abandono o intermitente, faço-me presente e cuido de me cuidar. Esse é o maior amor que me devo e dou-me. Reconheço-me como a grande dádiva que sou.
O meu maior presente.