O limpador de chaminés

O limpador de chaminés

Sep 28, 2022

Castelos Barrocos 

Quando andava pelas ruas de Paris, me espantava a beleza dos muros das casas a andar. 

Eu era um limpador de chaminés e não tinha familiaridade com tanta limpeza exposta e bem pintada em fachadas assim, com passadiços limpos, sem mato, sem lixo. 

Como me eram bonitos os muros das casas a andar! 

Tinham a majestosidade de Notre-Damm, chamavam a atenção não só pela beleza das fachadas, mas também pelos arabescos gárgulas, rindo, sorrindo muito para o mundo em bocas sanguíneas.  

Alguns de asas abertas, com os olhos ametistas e as garras douradas. 

Dentes marfins que se via até o chorar dos elefantes neles, tão brancos eram! 

Eram muito bonitos. 

Mas então eu tinha de entrar pelos muros, convidado obrigado que era, para limpar as chaminés. 

Que este era meu serviço, limpar chaminés das casas alheias, rastejar nos restos dos pós dos outros comeres, para comprar o meu pão. 

Quando eu entrava nestes muros, me deparava com um quintal enlameado, quase um charco. Urzes e todo tipo de planta nociva e praga rastejante que há na terra passeavam. Ratos, lagartos, baratas de todas as espécies (algumas até voavam) e moscas disputavam restos de restos de restos de restos... 

Uma demão de tinta tinha na parte da frente das casas caiadas, portas a ruir pintadas com a mesma cal, janelas embaçadas de gorduras e de limos a cair-se de tão velhas.  

As folhas caíam das árvores e lá vaziam outono, assim como as folhas das janelas, invernos. 

De muito tempo, muito, que já haviam passado muitos nas casas de muros bonitos. 

Tantos, que ninguém mais sabia o tal de quem eram as casas, se é que existia proprietário. 

Deveria de haver, desde que os filhos de Adão se espalharam e começaram a erguer cercas, deveria de haver. 

Os novos moradores só mudavam de casa e cuidavam dos muros e mantinham a fachada sempre limpa e majestosa. Havia que se cuidar dos muros, que é perigo muro baixo e que não brilhe nas luzes da Cidade da Luz. Tem de brilhar. 

Mas muros Barrocos custam caro. São duros de manter. 

Por estes motivos, galinhas ciscavam nas próprias titicas nos quintais abandonados, por não haver ninguém nas casas que lhes desse de comer, e nem mesmo o que comer para os que lhes dessem das casas.

E no fim das contas, iam levando: sabiam que seriam elas mesmas o almoço de amanhã, ou domingo, ou em dia de visita. O destino era certo, era certa a pena por crime nenhum, variava era o tempo da foice a cair. 

Muros Barrocos custam caro. 

Entrava, desviando-me do esgoto que jorrava em canos a céu aberto nublado (porém, fora dos muros, solarava) e das crianças que me pediam um pedaço de pão “moço, moço, uma esmolinha, pelamordedeus, moço! eu tô com fome!”, quando não tinha pão comigo para lhes dar. Tivesse o daria, já sabiam. 

Desviando-me o quanto podia destas visões de outros séculos, entrava nas casas. 

As chaminés eram longas e cinzas e longas, e a fuligem daria que fazer para limpar: até o céu ia a chaminé. 

Mas se não desse que fazer, não me chamariam para o fazer porque para coisas que julgam corriqueiras, coisas fáceis, não chamam profissionais, fazem por si que acham que sabem fazer. A chaminé daquela casa em especial que hoje me lembro, a título de exemplo, foi obviamente feita pelo dono da casa: um bom pedreiro, realmente experto e perito, além de ter construído a chaminé de outra forma e em bons fundamentos, teria pensado na entrada de ar e na saída de fuligem. 

Que deve ser assim nas casas em que habitamos. 

Como estava aquela, entrava fuligem e saía fuligem queimada, cozinhavam nas suas cinzas e de seu pó é que comiam e nele mesmo dormiam à noite. Jó, só nas cinzas, mas não nas cismas.

Cada um com seus cacos.

Estava a ruir, dava medo de entrar.  

Todas eram assim. Isso eram todas elas. 

Mas era meu trabalho, me pagavam, e o dono do muro rubi esperava boa limpeza. 

E eu a fazia. 

Saía imundo, recebia o meu naco de pão, dado com desdém: 

 – Um reles deste dentro dos meus muros, oh! Por Deus do céu! Só porque não quero me sujar com lixo e nem saio de buracos assim... Toma lá teu naco de pão, cão vagabundo, vai, vai! Se quiser água, bebe na rua que não quero mãos sujas em minhas canecas engor

douradas... 

Eu ia, era justo. Afinal, eram homens de a 

preço, tinham posses e nomes.  

Eu? 

Só limpava chaminés.  

Era meu nome então: o Mouro das Chaminés. Não tinha qualquer valor. 

O Mouro das Chaminés era como me chamavam. 

Quando me queriam, me mandavam uma pomba: há que limpar, se não quiser perder teu pão, venha. Eu ia. 

Muros Barrocos e titicas, fezes de fossas, janelas embaçadas, portais ruindo caiados – "moço, um pão, pelamordedeus!" 

Era sempre assim. 

Comia com as mãos calejadas meu pão, sujas de trabalho limpo. Nas casas de muros barrocos mesmo, algumas vezes. Isto, quando eram mal obrigados a me deixar ficar se a sujeira era muita. 

Não era raro terem de suportar minha presença, suja de si mesmos. Espelhos não são para todos.

Se espantavam os donos o comer simples assim: o sentar-se no lótus do chão, desfazer o cordão do pacote do pão, e comer.

Como se o pão com água e azeite precisasse de apoteose, de rituais maiores que o padre-nosso agradecendo a comida que vinha do chão, mas beijava os lábios em suor! 

O chão é longe da boca na nossa espécie, por isso assim é. 

Até o dia da foice. Era certo o destino. Variava apenas o trem. 

E as casas. 

Mas como eram lindas as gárgulas!  

Sorrisos marfins, olhos rubis, asas harpias! E que muros magníficos, altos, altivos, opressores. 

Muros Barrocos são difíceis de sustentar, devido ao peso das muitas gárgulas e seu rubis. 

Havia uns riquíssimos, uma legião de gárgulas nas fachadas.

Cada momento do dia, o Sol dava destaque para um. E sorriam!  

Dentro? 

Misérias. 

Mas eu, quando, quando eu voltava para o meu local, o meu caminho torto num longo percurso, sem curso, discursivo, só lá então que eu via muros quaisquer, como os meus, de minha casa. 

Os muros, em muitas, nem havia.  

Eram simples cercas de madeira com tramela pregada nas porteiras para que os galgos não fugissem e caíssem em rinhas, e para que se entendesse que dali para dentro era uma família e que havia de se pedir “me permite...?” “pois não...” “com sua licença...” “toda”. 

Nem eram muros como os de Paris, a cidade das luzes! Era uma vilinha qualquer de gente que não tem que se vestir nem onde cair morta, que vive. 

Enquanto eu subia os degraus para a minha casa via outras casas que, com muros que achegam, quase cortinas divisórias em casas de Damas de antigamente, me abriam suas janelas. 

E que vista linda, quanta beleza via nelas!  

Seus fundos de quintal que se viam pelas janelas, eram como a natureza das coisas: simples, tortas, funcionais, auto limpantes.  

Pássaros entravam e saíam e ninguém fazia conta, havia pouco pão, mas as migalhas bastavam para as aves. 

Um homem já falou disso há dois mil anos, eu li em algum lugar, mas me parece que só ao voltar todos os dias e ver os pássaros é que o lembrava. 

E então, vendo meu interesse genuíno na vista da janela, seus donos me abriam suas portas rijas, os gonzos tiniam, que não se abriam a quaisquer. 

E eu ouvia rir crianças sujas de ranho, limpando no braço correndo atrás de galinhas gordas só por farra, que as galinhas eram para o galo cantar por conta de poder acordar o dia, se não o Sol poderia não vir. Isso não podia, tinha de vir, no seu horário, do contrário, à noite, como piaria a coruja? Se ficou acordada na noite eterna, ia cair no sono, e nós, que nos guiamos pelos cantos da coruja e do galo, perderíamos as Horas.

E ouvia risos e gritos dentro da casa, chão batido, limpo com piaçava. As aranhas nem mais tentavam morar lá: iam fazer teias em muros mais altos, que ninguém as via, e lá ficavam. 

Aqui não tinham muita chance. 

E nós andávamos, janelas abertas para as outras, uma porta se fecha a outra abre outra se fecha.  

E muito se abriam as portas, gonzos rangiam, depois, selavam. Era hora de cada casa ir ter com seu senhor.  

E subíamos. 

Às vezes na longa escada, nossas casas cruzavam com muros altos Notre-Damm que nos olhavam por janelas de mentira. Lia-se nelas (que eram mudas): 

Que será que estes barracos sem muros andam a fazer aqui? Isto não pode ser assim... Olhem as calçadas! Tá que é só mato ralo e osso... deve haver ratos nesses matos... Olhe, olhe, olhe, são cobras! Olhe! Atenção! Alerta! 

E não dormiam atrás dos muros, de medo de perder seus charcos de ervas daninhas e murtas, e urzes, flores mecânicas de jardins eletrônicos, seus cilícios silícios. 

E nossas casas subiam o monte Everest, de lá, para o Olimpo ter com Prometeu... 

“Senhor... senhor...

Senhor!!!” 

“Hum?” 

“Tô te chamando lá do provador faz dez minutos...” 

“Desculpe, pensava em construção civil.” 

“O depósito é ao lado, tiozinho, aqui é uma loja de roupas.” 

“Sim, mas vou procurar uma construtora, não me interessam depósitos.” 

“Esta aqui, o que o moço acha?” 

“Não, não jovem, você não entendeu: eu quero uma camisa, não uma embalagem.” 

“Mas esta é de marca...” 

“Vê-se isto muito obviamente pelo tamanho do Naipe que está escrito nela por trás e pela frente, e pelas mangas dessa carta também. Deve até brilhar no escuro. Não sou farol para ninguém, nem faço caso de andar no mar procurando, que prefiro ilhas. 

Eu quero uma camisa. 

Ca - mi - sa.  

Lisa e preta, por favor, como já havia lhe dito.

Ah, Número 3.  

Quanto às suas embalagens, não se preocupe: há muito produto vagabundo no mercado que carece delas pra você vender, têm crédito para isso. Terá pão para pôr na mesa, comida, comissões, não se preocupe. Elas não servem para mim, são muito pequenas. 

De momento eu vou levar a camisa lisa, preta. Me cabe duas vezes: no bolso, e no gosto, porque o gosto dos outros, menina, é para boca de refrigerante.  

Eu não sou refrigerante para estas embalagens.” 

“Ora, moço, nesta Hollywood, quem não Soda? Que que é você, se não outro produto que veio da mesma terra?” 

“Produto da terra não é da Terra, menina, é da máquina.  

Terra não produz, dá fruto, à luz.  

Produção tem a ver com máquinas, não com vida. 

E eu, eu não morro em Hollywood, moça. Moro no Sino da Catedral e venho das cinzas às seis. 

Eu sou o Mouro das Chaminés.” 

Me ouve, e sai resmungando...

“Mais um pé rapado... inda por cima, louco. Sexta-feira de m... "

No entanto, morava na mesma vilinha que eu.  

Mas entendo.  

Necessário vender-se muito para poder por pão no prato hoje.  

Cada um, um caminho. Na vila me abriria a janela e me deixaria entrar e ouvir seus gonzos. 

Cada coisa, um tempo. A pressa depois dos 50 acelera a mão ossuda. 

Não a queria, então. 

Eu sou o Mouro das Chaminés. 

Meu pai também foi.  

Venho de uma longa linhagem de cinzas... 

Quando morri, me puseram em um rio lá no alto das Serras, já que não tinha mais muros e era eu apenas. 

Só. 

Cinzas. 

Desci escorregando pelas corredeiras frescas no meio da mata quase intocada, na primeira chuva mais forte. 

Então eu, quando eu finalmente, depois de tanto buscar, cheguei no mar... 

FIM.  

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