O avô Martinho. Já lá vão 20 anos que partiste deste plano. Farias hoje 102 anos se ainda cá estivesses. E as coisas que se descobrem depois da tua partida. Que afinal o avô João era chamado de Martinho por ter nascido no verão de São Martinho. E claro que com o sol em escorpião só podia ires-te revelando, já que tudo sempre foi discreto e escondido. E com esta data e amigas que vão aparecendo com aniversário na mesma data, só pode serem os sinais da vida a trazerem-te para o presente. É que são tantas as distrações que a vida encarrega-se de nos trazer lembretes. Afinal vives em mim avô, nas minhas células, transporto a tua herança.
O avô contrabandista. E digo-o com tanto orgulho. É que fora de lei, é fora da norma vigente, contra corrente, a rebeldia que me assiste, a ti te devo. Quem diria que iria estudar três anos em Sevilha, Constelações Familiares. Um navegar pela minhas raízes, construir a minha árvore. Difícil, com tanta informação intrincada e desconhecida. E as novas descobertas sobre este avô que só conheci na vertente descontraída, despreocupada e desfrute da vida. Os jogos da batota na taberna, a banca de peixe no mercado de Lagos, e o seu meio de transporte, a bicicleta que o levava de casa para o trabalho. Guardava o dinheiro num saco de plástico na algibeira e também escondia o dinheiro debaixo do colchão. Conheci-lhe a ligeireza, a simplicidade e não mexam no meu dinheiro. Comia açorda ao pequeno almoço com o corpo de vinho e cuspia para o chão. Usava folhas de jornal para se limpar apesar de haver papel higiénico.
Preservava os costumes antigos e via através dele esse tempo antigo, rude e primitivo a que já não assistira. Não me fazia confusão, aliás via nele uma certa liberdade e espírito selvagem que não se deixou levar pelas normas e modernices. Fiel a si próprio e à sua casmurrice, mas que em nada interferia com os outros. Só a si obedecia e se o copo de vinho tinto era o seu fiel companheiro e que às vezes lhe toldava o movimento e cair pelo caminho, quando dele abusava, não incomodava ninguém. Bem disposto e divertido, guardo-lhe memórias boas.
Só levantava a voz e o temperamento quando lhe tentavam impor e exigir comportamentos. Ele só queria estar na vida dele.
Se lá atrás perdeu os pais jovens e a vida quis que ele e os cinco irmãos se fizessem à vida muito cedo para subsistirem à fome que era muita naqueles tempos. É só tarde, com filhos já adolescentes que uma irmã o encontra e se dá por ter família. Não foi pela boca dele que soube a sua história, nem andanças. Ia deixando escapar uma coisa ali, outra acolá.
Tempos difíceis criam grandes heróis que se fazem à vida e lutam para a preservar. Há uma força maior que faz querer continuar e vencer. E trago essa força nos meus genes. De quem apesar das dificuldades continuou com a força de vida e acrescentou mais vida ao mundo, para que hoje eu pudesse estar também aqui.
E hoje é o avô materno, João, o Martinho que celebro e honro, os 102 anos, que faria hoje neste plano, no outro, para quê idade, és eterno. E tive o privilégio de o ter presente fisicamente até aos seus 82 anos.
Foi uma força masculina muito presente, uma referência, um segundo pai. E sempre se impunha e atravessa perante a mãe generala. "Deixa a criança, se ela não quer comer não a obrigas, deixa-a ser e estar. " Hoje reconheço as palavras sábias "deixa-a ser". Ele sempre me mostrou o caminho, sê o que és, e os outros? Sacode-os, barimba-te para a opinião dos outros, não te preocupas, desfruta o momento.
É assim que o guardo, com estas memórias frescas de uma liberdade selvagem, talvez um pouco irresponsável aos olhos dos outros, por gostar da pinga, mas para mim um Grande Avô.
Há sempre tantas prismas por onde olhar. Há o difícil, o sofrido, as dificuldades, mas há sempre os recursos, as estratégias de como a vida vingou.
E recordar, agradecer, honrar é trazer para dentro. É manter vivo nos meus passos.
Um brinde a ti avô! Um brinde a nós!